A alma encontrando o corpo (negro) da docente.

Tenho pensado muito sobre a minha construção diária como uma mulher negra educadora de uma maioria de crianças negras, visto que sou professora de ensino fundamental em uma escola pública de uma área de periferia.

São muitas experiências que me atravessam por conta desse lugar que ocupo. Minha psicóloga dizia que eu tinha deixado na escola (por conta da minha trajetória escolar) uma Bruna, cheia de inseguranças e muitas dores provocadas pelo racismo sofrido e nas sessões ficava cada vez mais claro que todas as vezes em que me formei professora, existia uma tentativa de ir lá resgatá-la. Então, acabo me reconhecendo em muitas das minhas crianças e em alguns momentos quando piso na sala de aula, tenho os mesmos medos de rejeição, do estranhamento e incômodo que meu corpo pode causar, me transporto novamente para aquele lugar da aluna indefesa.

Ao longo desse ano, fui tentando no dia a dia inserir na minha prática, maneiras de tornar a escola um lugar mais confortável para minhas crianças negras. O racismo estrutural não exclui sempre de maneira visível, pequenos atos vão tornando aquele espaço cada vez menos pertencentes aqueles muitos corpos negros que vivem naquele espaço. Então uso também dos pequenos atos para ir aos poucos criando um espaço um pouco mais seguro para essas crianças. Afeto, valorizar a presença, elogiar as potencialidades, elogiar a aparência, tudo isso é necessário na construção dessa prática onde essas crianças negras, que são a maioria, se enxerguem como sujeitos que importam. Eu percebo isso nas pequenas situações, como nos momentos em que elas pedem para eu desbloquear meu celular para ficarem olhando a foto da tela inicial que são 5 garotinhas negras de cabelo afro ou como no dia em que disse para uma aluna negra que ela era muito linda e ela respondeu: “eu puxei a senhora, tia.”, tamanha a sensação de identificação. A preocupação em ter uma prática pedagógica antirracista para além dos conteúdos também interfere no rendimento escolar desses alunos, em outro momento trago pesquisas que falam sobre isso.

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E em conjunto também me construo, desconstruo e reconstruo minhas formas de ser uma mulher e educadora negra. Costumo deixar que as meninas toquem meu cabelo. Na infância, eu era quem penteava o cabelo das colegas brancas. O meu só era encostado no momento da chacota, nunca no momento do cuidado. As minhas alunas (as que são mais próximas a mim) sempre fazem o cafuné no meu cabelo crespo do jeito certo, nunca precisei ensiná-las que não se passa os dedos da raiz pra ponta. Elas fazem com cuidado e ainda alertam: cuidado pra não desfazer os cachos da tia!. Elas sabem que textura do topo da cabeça é diferente da nuca e chamam as molinhas de “bebês”. Mas hoje, algo atípico aconteceu. Eu senti uma mãozinha no meu cabelo e não olhei quem era.

Achei que se tratava das meninas que costumam mexer sempre. Mas não era. Pensei em pedir para tirar. Porque se trata de uma aluna, a única que fala coisas como: “tia, seu cabelo atrapalha quando eu tô tentando copiar, porque você não corta?”. Mas pensei que poderia ser interessante e parte da desconstrução deixar que ela tivesse contato com o meu cabelo, que para ela, representa o diferente. Afinal, se trata de uma criança que tem o cabelo liso.

Mas ao final do que deveria ter sido um ato afetuoso, uma aluna disse: tia, ela levantou o seu cabelo!

Na hora um misto de raiva e tristeza tomou conta de mim. Eu fiquei novamente com 5 anos. Me senti pequena, invadida. Ainda mais porque meu cabelo estava mais arrumado que o normal porque no turno da tarde, eu teria uma reunião de responsáveis para dar.

Mas diferente do que ocorria quando eu tinha 5 anos, não houveram risadas, houveram olhares de reprovação e muito cuidado com os olhares das outras sendo meu espelho, afirmando que eu tinha arrumado a bagunça que ela tinha feito.

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Sei que o lugar que ocupo como professora, facilita o apoio nesse tipo de situação. Mas também sei que falar com eles esporadicamente sobre Carolina de Jesus, exibir clipes da MC Sofia, Dream Team do Passinho, levar as artes da Yná Santos para eles pintarem e contar que a artista é uma mulher negra, que homenageia mulheres negras fazendo lindos retratos delas, vem contribuindo pouco a pouco para construirmos juntos esse novo lugar. Onde cada criança tenha a chance de se sentir contemplada pela educação que está recebendo. Pouco a pouco, a alma da criança rejeitada vai encontrando o corpo da docente e se fortalecendo em comunidade.

Afrodengos,

Bruna de Paula.

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